REBUÇADOS E SILÊNCIOS
NOTA INTRODUTÓRIA

Escrevo em liberdade.
E sobre a liberdade.
Escrevo lembrando que as palavras também estiveram presas.
E que foi preciso coragem para as soltar.
Hoje, escrevo com gratidão.
Pelas palavras que me foram negadas em silêncio
e pelas que agora posso escolher livremente.
A liberdade deu-me muito.
Mas também lhe devo.
Devo-lhe o meu olhar mais aberto,
a minha voz mais firme,
a memória que me acompanha.
E se…
se for por rebuçados, por silêncios, por uma rua de infância,
então que seja.
Porque até as histórias mais pequenas
podem dizer muito sobre o tempo em que vivemos.
REBUÇADOS E SILÊNCIOS
Havia um prédio na minha rua que metia respeito e alguma estranheza. Era um edifício de quatro apartamentos, bonito, de cores claras. Ninguém o nomeava em voz alta, mas os adultos sabiam: ali morava o medo. Ali funcionava a sede da PIDE, em Portimão.
Tinha 17 anos quando o país acordou para a liberdade. Cresci nessa rua, sob o olhar discreto e vigilante de quem lá trabalhava. Mas na minha infância, nada disso fazia sentido. Éramos crianças. Corríamos, saltávamos à corda, brincávamos ao manecas e aos sete cavalinhos da batalha. A rua era o nosso quintal. Era onde tudo acontecia. Conhecia cada traço da estrada como conhecia a palma da minha mão.
Os homens da casa da PIDE pareciam pertencer a outro mundo. Um mundo secreto, que funcionava sobretudo à noite. Era nessa altura que os opositores do regime por lá permaneciam. Quem estivesse atento ou quem sofresse de insónias podia ver coisas estranhas a acontecer.
Mas os homens da PIDE gostavam da criançada. Davam-nos rebuçados. Entrávamos pela secretaria adentro para os receber. E nós gostávamos deles. Porque nos sorriam, porque eram simpáticos. Porque nos davam doces. E porque a infância tem essa forma estranha de filtrar a realidade, deixando passar apenas aquilo que brilha.
Na minha casa não se falava de política. Nem da guerra, nem do medo. Os vizinhos também não falavam. Havia um pacto tácito de silêncio que cobria tudo. Cresci assim, rodeada por ausências: de palavras, de explicações, de liberdade.
O edifício dividia-se entre o funcional e o habitacional. A “secretaria” da PIDE ocupava o rés-do-chão direito. O chefe vivia por cima, no primeiro andar. Do lado esquerdo, morava o subchefe. O rés-do-chão esquerdo... ficou-me esse andar como uma página em branco. Talvez por não ter crianças. Talvez por ter segredos a mais. Não sei. A memória falhou-me.
No dia 25 de Abril de 1974, eu estava nas aulas, no Liceu. De boca em boca, os alunos iam dizendo que havia uma revolução. Mas que palavra tão estranha para nós! Quando voltei para casa, o mundo estava de pernas para o ar. O povo enchia a rua. Gritava, insultava, apontava dedos. A multidão aglomerava-se diante daquela casa até então intocável. O meu pai, homem impulsivo, juntou-se ao coro dos gritos e dos insultos. Gritou alto. Com uma força que me gelou por dentro.
E eu… eu apenas olhava. Sem saber o que pensar. Sentia que tudo aquilo me atravessava, me moldava. Um país novo nascia diante dos meus olhos, e eu nascia com ele, mais desperta, mais consciente., mais livre.
Hoje, quando recordo aquela casa e os seus rebuçados, não o faço com raiva nem com saudade. Faço-o com espanto. Porque a minha infância foi vivida à sombra da repressão, e eu não soube. Porque a liberdade chegou um dia como quem abre uma janela há muito trancada, e eu vi a luz entrar, pela primeira vez, com olhos de menina crescida.
Foto: Rua da PIDE em Portimão, no dia 25 ou 26 de Abril 1974
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