Entre o Aroma do Café e o Passado
Estaciono o carro uns metros à frente, no único espaço vago que encontro. O dia mal começou, mas já há um corrupio de gente. Saio e caminho em direção ao café. À entrada, o tilintar das chávenas e colheres mistura-se com o aroma quente de café e bolos. Há um cheiro adocicado no ar, familiar, como um pedaço de infância guardado no paladar.
A sala não é grande, mas um espelho ao fundo dá-lhe profundidade, duplicando o espaço como se fosse um portal para um café paralelo. As mesas estão quase todas ocupadas. Vozes cruzam-se, palavras soltas flutuam no ar—falam do tempo, das notícias, de espetáculos, de contas por pagar. A maioria mastiga o pequeno-almoço entre frases espaçadas. Eu, porém, só quero um café.
Nunca tomo o pequeno-almoço. Não há lógica para isso—é um hábito, um capricho, uma mania como outra qualquer. Simplesmente sinto-me melhor assim, mais leve, como se o corpo despertasse melhor sem o peso da comida.
Escolho uma mesa voltada para a porta. Nunca me sento de costas para a entrada. Preciso de ver quem entra, quem sai. Não é medo, mas também não é só um hábito. É aquela sensação instintiva de querer antecipar o que pode acontecer, mesmo que nunca aconteça nada.
O café chega. Bebo-o devagar, sentindo o seu sabor pelas minhas papilas gustativas, enquanto o meu olhar vagueia. A vitrine, carregada de bolos exageradamente coloridos, parece um quadro surrealista. Azul, verde, rosa choque—uma paleta quase artificial. Podiam ser peças de um jogo de tabuleiro e não doces para comer. Mas as cores vendem, despertam desejos.
Desde que tenho telemóvel, deixei de usar relógio de pulso. Haverá um relógio na parede? A curiosidade desperta-me. Percorro o espaço, aproveitando para reparar na decoração. Tons terracota, quadros com fotografias da cidade. Numa das imagens, um beco estreito com roupa estendida, capturado em preto e branco, como uma memória presa no tempo.
Sempre fui pontual, mas já me habituei à impontualidade dos outros. Espero. Na mesa ao lado, falam do espetáculo de ontem no teatro municipal. O entusiasmo na voz de quem conta diz-me que foi bom, mas os outros à mesa reagem com desinteresse. Nem sempre há reciprocidade no entusiasmo.
A porta abre-se. Uma brisa inesperada atravessa o café, trazendo consigo um cheiro a terra molhada e uma sensação de ar límpido. E então vejo-a. A professora Lurdes.
Vem devagar, apoiada numa bengala, a filha ao seu lado. O tempo desenhou-lhe rugas, pele flácida e deu-lhe um andar hesitante, mas há algo intocado nela—o olhar atento, curioso, o mesmo de sempre. Não me viu ainda. Mas eu preparo-me. Ajusto-me na cadeira, tomo um último gole de café e sorrio. Estou pronta para despertar as memórias.
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