O Brasileiro

António nasceu em Porches-Velho, no Algarve, numa época de grandes dificuldades. Quase a completar um ano de vida, perdeu a mãe para a gripe espanhola, também conhecida como pneumónica. Essa pandemia devastadora, associada ao final da Primeira Guerra Mundial, atingiu com força as populações mais pobres, que tinham pouco ou nenhum acesso a cuidados de saúde. Havia escassez de médicos, e os doentes dependiam de remédios caseiros, benzedeiras e da esperança. A falta de hospitais tornou a epidemia ainda mais letal. Mesmo os enfermos eram forçados a continuar a trabalhar nos campos para sobreviver, espalhando ainda mais a doença. Muitos acreditavam que a gripe era um castigo divino. As igrejas enchiam-se de fiéis em oração, enquanto outros confiavam nas ervas medicinais e nos remédios populares. O Algarve foi duramente atingido, e a vida das populações rurais ficou marcada pela perda, pela pobreza e pelo trabalho árduo.

O pai de António, José, era agricultor e, todos os anos, trabalhava para o Morgado de Reguengo (Fialho), onde produzia cestos de verga. Esses cestos, fabricados com destreza e paciência, eram exportados para diversos países da Europa, América e África. Gosto de imaginar que, algures no mundo, existiram pessoas que usaram os cestos feitos pelas mãos calejadas de José, um homem que trabalhava incansavelmente para sustentar a família. José vivia no sítio do Poço Santo, em Porches, e teve, além de António, três filhos do primeiro casamento: José, João e Manuel.

Na adolescência, António mudou-se para Quarteira, onde foi acolhido por uma família de pescadores. Ali encontrou carinho e pertencimento, e depressa aprendeu a arte da pesca. O mar passou a ser seu confidente, seu horizonte. Muitas vezes, ao olhar para a imensidão azul, imaginava as terras distantes que existiam do outro lado. Mas a vida era dura e as oportunidades, escassas.

Durante as décadas de 1930 e 1940, Portugal vivia sob a ditadura do Estado Novo, liderado por Salazar. O Algarve, uma região pobre e rural, sofria com a falta de empregos e a fragilidade da economia. As secas e as dificuldades no escoamento da produção de figo, amêndoa e alfarroba levaram muitos a emigrar, especialmente das zonas de Lagoa, Porches, Silves e Monchique. O Brasil era um destino comum. No Rio de Janeiro e, mais tarde, em São Paulo, os algarvios trabalhavam no comércio, na construção civil e na pesca.

António sonhava com uma vida melhor. Trabalhou arduamente, vendendo peixe, e juntou dinheiro para a passagem. Comprou o bilhete por um valor estimado entre 1000$00 e 1200$00 escudos e rumou a Lisboa para embarcar. Nessa altura, dois navios faziam a rota Lisboa-Rio de Janeiro: o Serpa Pinto e o Mouzinho. Embarcou num deles e, durante os cerca de 12 dias de viagem, observou os portos em que fez escala. As condições a bordo eram precárias. Muitos viajavam como clandestinos ou endividavam-se para pagar a passagem. A chegada ao Brasil não era fácil: tinham de se adaptar a um novo país, muitas vezes sem apoio. Alguns prosperavam, mas outros enfrentavam anos de dificuldades.

Quando chegou ao Rio de Janeiro, António deve ter apanhado um comboio para Volta Redonda, a cerca de 130 km de distância. Talvez já tivesse por lá algum conhecido que o tivesse chamado. Estabeleceu-se na Rua Nelson Godoy, no bairro Centro, e montou um negócio: a loja de roupas "Casa dos Irmãos Gil". Chamou um irmão mais novo, o Luiz, filho do segundo casamento do pai, e um primo para o ajudarem no comércio. Alguns emigrantes faziam fortuna e voltavam para Portugal, construindo as famosas "casas dos brasileiros". Outros nunca regressavam. António, porém, voltou. Construiu a "Vivenda Brasil", um símbolo da sua jornada e do seu sucesso. Tornou-se e passou a ser conhecido como o brasileiro. 

A 16 de julho de 1999, António, já idoso, foi ver o mar que tanto amava. Estendeu a toalha na areia, abrigou-se sob o chapéu de sol e fechou os olhos. Sentia o calor aconchegante de um dia de verão. Nunca mais acordou.

António foi o meu pai.



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