Os inquilinos da chuva
Aproximo-me da janela e espreito a rua. O meu campo de visão é limitado pelo que a moldura permite. O dia está cinzento, a chuva cai num fio contínuo, e a rua está deserta, como se toda a gente tivesse desaparecido do mundo. Do beiral da casa, a água escorre em linhas perfeitas, formando cordas líquidas que se desfazem ao tocar no chão. Fico a imaginar quantas gotas compõem cada uma dessas linhas, mas é um número impossível de calcular. Só sei que chove a potes.
A água corre pela rua abaixo, impiedosa, lavando tudo no seu caminho. Talvez muitas almas por aí precisassem de uma limpeza assim, penso. Mas a chuva não lava culpas, nem tristezas, nem os rastos invisíveis que as pessoas deixam atrás de si.
Desvio o olhar. Algo me chama a atenção. Uma mancha preta e branca destaca-se junto às rodas do carro estacionado mesmo em frente à janela. Um animal. Um gato, certamente. Há muitos por aqui. Na minha casa dormem três, cada um com o seu canto escolhido. Um entra pela janela da cave e enrosca-se no velho sofá esquecido lá dentro. Outro ocupa uma cadeira com almofada junto à porta de entrada, indiferente à vida que se sente dentro de casa. O terceiro prefere a varanda das traseiras, como se ali tivesse construído o seu refúgio privado. Todas as manhãs, ao acordar, dou de caras com esses inquilinos silenciosos, que vêm e vão sem nunca darem explicações.
Não sei de quem são, onde vivem, o que fazem durante o dia. Apenas sei que, quando a noite cai, regressam, como se a escuridão os guiasse de volta ao seu abrigo improvisado. Antes, quando tinha cães, nenhum gato ousava cruzar o quintal. Agora, tomaram posse da casa, transformaram-na num dormitório discreto, onde repousam até que o sol nasça outra vez.
Lá fora, o gato malhado continua debaixo do carro, abrigado da chuva. Agora, a água já não cai com tanta fúria. Goteja, serena, sobre a rua adormecida. E eu, sem saber bem porquê, afasto-me da janela.
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