O CORPO DAS PALAVRAS
Já escrevi sobre favas, gárgulas, estevas, amores e desamores. Já escrevi sobre a infância, o tempo, os cheiros, os dias que passam devagar e os que correm sem olhar para trás. Mas hoje, curiosamente, não tenho assunto. Nenhum tema se impõe. Nenhuma imagem insiste em nascer.
E, no entanto, aqui estou. A escrever.
É uma contradição que me diverte: não haver nada para dizer e, mesmo assim, sentir esta urgência — esta vontade que não se explica, mas que arde como uma febre mansa. Escrever sem motivo é, talvez, o motivo maior. Não por vaidade, nem por obrigação, mas por algo mais fundo, mais instintivo.
É visceral. Como respirar, como beber água quando se tem sede. Escrever é o meu modo de existir no mundo.
Sinto-me feita de palavras. Mais do que de água ou sangue. As palavras correm em mim como rios invisíveis. Moldam a minha carne, erguem os meus ossos, bordam a pele com memórias e imagens que ninguém vê. Quando me olho, vejo frases a ondular nos braços, versos no peito, vírgulas a repousar no fundo dos olhos.
Elas estão dentro, mas também fora. Circulam à minha volta como um campo magnético. Protegem-me. Aquecem-me. Enchem a sala de sentidos.
As palavras são flores, canções, brisas. São a música secreta que embala os dias. São montanhas que me sustentam, nuvens onde repouso o pensamento, lareiras acesas no inverno das dúvidas.
Neste instante sem assunto, sem rumo, dou por mim a escrever sobre o próprio ato de escrever. Um gesto de amor absoluto, talvez.
E assim, sem saber de quê, escrevi sobre tudo.
"O Livro Verde" pintura criada por Harold Knight (1874–1961)
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