O PALADAR DA MEMÓRIA

Hoje partilho um texto que nasceu do simples gesto de cozinhar favas, oferecidas com carinho, e da memória que esse gesto despertou. Não é só uma receita — é uma viagem no tempo, entre sabores que mudam com a idade, recordações de infância e os dias em que tudo tinha o seu tempo certo.

Espero que gostem desta pequena história, onde o quotidiano se cruza com a memória e o paladar.
O cheiro do toucinho a estalar na frigideira mistura-se com o da morcela a libertar o seu aroma denso, quente, quase cerimonial. Na cozinha, o lume do fogão crepita com um som sereno, antigo. Saio para o quintal, passo entre as couves e os coentros ainda orvalhados, e colho com cuidado uns raminhos de hortelã, coentros e rama de alho. São para a panela, claro. Hoje cozinham-se favas — não as do supermercado, mas as verdadeiras, as que ontem nos ofereceram com um sorriso e um "foram apanhadas esta manhã, na zona de Messines, ali entre os laranjais".
Foram descascadas hoje quando o sol subia no horizonte, entre conversas baixas e o barulho dos dedos a libertar as favas da vagem. Vieram acompanhadas de laranjas de casca espessa e sumo doce, como só o Algarve sabe dar. Serão a sobremesa.
Enquanto preparo tudo com um vagar respeitoso, como quem participa num ritual antigo, lembro-me do meu pai, da sua figura curvada sobre a terra junto à “Vila Brasil”, onde plantava e colhia favas com a mesma dedicação que punha em tudo o que fazia com as mãos. Nesse tempo, eu torcia o nariz. Ficava de trombas só de saber que o almoço seriam favas. Nunca vi as crianças a gostarem de favas, e eu não era exceção. Era pelas ervilhas com ovos que ansiava, pelas primeiras do ano, que vinham com abril e traziam consigo um sabor fresco, quase festivo.
Naquele tempo, comia-se o que havia, o que a estação permitia. Favas e ervilhas eram um luxo efémero, três ou quatro refeições por ano — e sabiam à terra e ao tempo.
Agora, muitos anos depois, dou por mim a gostar das favas. Estranha coisa, esta mudança. Será que as papilas gustativas envelhecem connosco? Tornam-se mais tolerantes? Ou será o coração que aprende a encontrar sabor nas memórias, nos gestos repetidos, no cheiro que sobe da panela como uma visita da infância?
Hoje, enquanto mexo as favas no tacho e deixo que o cheiro invada a casa, sinto que aprendi a saborear não só os alimentos, mas o tempo que passou por eles. E por mim.


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