O TEMPO ENTRE DOIS OLHARES
Subiu as escadas a correr.
A tarde deixava-se embalar por uma morna doçura, improvável para os primeiros dias de outubro. Havia uma luz dourada a cair nos telhados, como se o outono ainda hesitasse em chegar. Tinha treze anos e o coração agitado, cheio da curiosidade própria de quem pressente que algo novo está prestes a acontecer. Queria saber em que turma ficaria naquele ano, em que sala, com que colegas. O ano era 1973.
No átrio do liceu, encostado a uma porta, um rapaz de quinze anos fitava-a com uma atenção insistente. Eram olhos castanhos, intensos, e um cabelo preto, espesso, desalinhado como se tivesse vindo a correr também. Sentiu-se desconfortável com aquele olhar que a despia sem malícia, mas com uma curiosidade silenciosa. Não o achou bonito. Pareceu-lhe um rapaz mais velho, de outro ano. Nunca se interessara por rapazes. A timidez era a sua couraça e, por trás dela, vivia protegida do tumulto que é crescer.
O rapaz, no entanto, parecia fascinado por aquela presença leve e rápida como uma brisa. Durante algum tempo, encontrava pretextos para a ver, para se cruzar com ela nos corredores, no pátio, no campo de jogos. Ela percebia — e evitava. Dois anos depois, ele partiu para Lisboa. E ela, envolta nos seus dias de escola, quase o esqueceu.
Quase.
Em 1980, ele voltou. Era um jovem homem agora, mais seguro, mais alto, e os olhos castanhos continuavam os mesmos. Cruzaram-se num café, por acaso. Ele reconheceu-a imediatamente. Ela, hesitante, sentiu o peso de um passado que nunca chegou a ser futuro. Conversaram. Ela, movida talvez por um arrependimento indefinido, aceitou dar um passeio de carro para ver o mar. Ele contava episódios da cidade grande, ela ouvia com um sorriso calado. Mas ainda não era tempo. O coração dela permanecia adormecido.
Não voltaram a ver-se. A vida, com os seus atalhos e labirintos, encarregou-se de os afastar.
Durante quarenta anos, não souberam um do outro.
Até que o mundo parou. A pandemia fechou portas e janelas, mas abriu outras — invisíveis, digitais, inesperadas. Foi nesse silêncio das ruas que ela se lembrou dele. Procurou o nome, encontrou um rosto envelhecido, familiar, sorridente. Leu o que ele escreveu e postou, viu fotografias de família, passeou pela sua vida como quem percorre uma casa antiga, cheia de ecos.
Enviou-lhe uma mensagem. Simples. Ele respondeu com calor. Começaram a conversar — primeiro com prudência, depois com entrega. Redescobriram-se. Eram agora dois seres maduros, marcados pela vida, tocados pela solidão. Falavam todos os dias. Riam, partilhavam memórias, confidências, pequenas dores e alegrias do quotidiano. Uma amizade intensa cresceu entre eles, feita de afeto e compreensão mútua.
E então, um dia encontraram-se. Foi num centro comercial. Ele vestia uma camisa branca que realçava o tom bronzeado da pele. Estava bonito.
Quando se olharam, foi como se o tempo tivesse dado uma volta completa e regressado àquele primeiro dia de outubro, no átrio do liceu. Mas agora havia ternura nos olhos dela. E uma promessa.
Começaram a encontrar-se para tomarem um café e conversarem. Ele falava pelos cotovelos. Ela ouvia. Juntos, descobriram o prazer das conversas longas. Ela começou a senti-lo dentro do peito — uma presença suave, uma ternura que se tornava amor. Um amor tardio, mas pleno. Sem urgências, sem ilusões, mas com verdade.
Ele encantou-se de novo, como se os anos não tivessem passado. E ela, que outrora o tinha rejeitado, entregava-se agora devagar, com medo e maravilha.
Mas o amor, às vezes, também assusta.
Ela começou a sentir uma inquietação que não sabia nomear. Havia nela um receio antigo, um medo de pertencer, de se perder na vida de outro. Perguntava-se se aquele amor era um presente ou uma repetição tardia do que nunca foi.
Um dia, decidiu afastar-se.
Escreveu-lhe uma mensagem curta, sincera, onde dizia que precisava de silêncio. Que o carinho continuava, mas que não podia amá-lo como desejaria. Pediu-lhe compreensão. E ele, com o coração apertado, respeitou a sua decisão.
Continuaram a viver.
Ela guardou-o como se guarda um segredo luminoso. E ele continuou a sentir que tinha valido a pena os bons momentos que passou na sua companhia.
Porque há histórias que não precisam de um fim feliz — basta que sejam verdadeiras
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