OVOS , COELHOS E O VAZIO EMBRULHADO
Hoje entrei no supermercado Auchan e fui imediatamente engolida por uma avalanche de cores, brilhos e figuras sorridentes de chocolate. Ovos empilhados como blocos de construção, coelhos dourados em fila, amêndoas a reluzir sob luzes artificiais. Por momentos, pensei que tinha tropeçado num parque temático, não da infância, mas do consumo.
Saí dali com uma pergunta atravessada: o que é que andamos, afinal, a celebrar?
Vivemos tempos em que tudo se transforma em produto. Símbolos antigos, cheios de história e de significado, são hoje apenas pretextos para campanhas promocionais. A Páscoa não escapa a esta lógica. Pelo contrário: tornou-se um dos palcos principais da teatralidade comercial.
Mas por que razão aparecem coelhos e ovos nesta época, repetidamente, como se fossem peças centrais de um ritual que poucos compreendem?
Ambos têm origens simbólicas muito anteriores ao cristianismo. O coelho, conhecido pela sua capacidade de reprodução, é há milénios símbolo de fertilidade, de vida que recomeça. O ovo, em diversas culturas pagãs, representa o nascimento, o ciclo da existência, o renascimento que a primavera traz. Estes símbolos naturais foram posteriormente absorvidos pela tradição cristã: o ovo passou a representar o túmulo vazio de Cristo, sinal de ressurreição e esperança. E o coelho, que em algumas lendas germânicas era mensageiro da deusa da primavera, foi também incorporado como figura pascal.
Mais tarde, com o avanço da industrialização e do marketing, surgiram os ovos e os coelhinhos de chocolate, as amêndoas açucaradas, os cestos cheios de apelo visual. Uma celebração do renascimento tornou-se, pouco a pouco, uma montra de excesso e desvio. O símbolo tornou-se mercadoria. A tradição, espetáculo.
O que mais me inquieta, porém, não é a existência destas imagens, mas o seu esvaziamento. Celebramos sem pensar, repetimos sem entender, compramos sem perguntar porquê. E assim, numa época que deveria convidar à introspeção, à renovação interior, à escuta do que realmente importa, acabamos mergulhados em ruído e distração.
A Páscoa, enquanto momento de pausa, de silêncio, de reencontro com o essencial, parece cada vez mais distante da forma como é apresentada nas montras. E no entanto, talvez ainda vamos a tempo.
Acredito que celebrar pode ser também resistir. Resistir ao impulso de comprar só porque “é tradição”. Resistir à ideia de que só há festa se houver doçura embalada. Resistir ao apelo fácil do brilho e do volume, e escolher, em vez disso, gestos pequenos, mas verdadeiros.
Talvez a Páscoa esteja justamente aí: na simplicidade de um reencontro, na delicadeza de um gesto generoso, no desejo sincero de recomeçar.
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